segunda-feira, 14 de março de 2011

‘Taxi Driver’, 35 anos de um melancólico passeio

Publicado no site da revista Alfa em março de 2011
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Em 8 de fevereiro de 1976, o roteirista Paul Schrader chegou ao Cinema 1 de Nova York com 15 minutos de atraso, para a sessão de estréia de Taxi Driver, o filme que escrevera. Uma longa fila em frente ao cinema o assustou e o fez pensar que a a gerência não havia aberto ainda as portas. Chegando mais perto é que entendeu que aquela multidão já se formava para a segunda sessão. Era o início do sucesso deste clássico dirigido por Martin Scorcese e que está sendo exibido esta semana nos Estados Unidos em sessões especiais com cópias restauradas e  que chega em blu-ray em abril, com altíssima definição. Taxi Driver é considerado um dos melhores trabalhos do diretor, imortalizou Robert De Niro, lançou Jodie Foster, fez com que a frase ‘You talkin´to me?’ entrasse para os anais da cultura pop moderna e tem uma história fascinante por trás das câmeras, a começar pela do seu roteirista.

Paul Schrader vinha de uma rigorosa educação calvinista e chegou a declarar que seu pai lhe chicoteava em, pelo menos, seis dias da semana, enquanto a mãe, para lhe mostrar o que seria o inferno, colocou uma agulha por baixo de sua unha e afirmou que aquela dor aconteceria todos os dias, o tempo todo, se ele não fosse para o céu depois que morresse. Com uma criação dessas, não era de se estranhar que ele tivesse uma profunda obsessão por armas e suicídio e a idéia fixa de que  violência é a grande força redentora de todo o mal. Na primavera de 1972, demitido do jornal LA Free Press por ter metido a boca em Easy Rider, enfrentando um divórcio e abandonado pela namorada, escreveu em 10 dias, a primeira versão de Taxi Driver, como inspiração para trabalhos futuros.

Dois anos depois, já trabalhando em Hollywood e encantado com o filme francês O Batedor de Carteiras de Robert Bresson, reescreveu sua obra, uma visão pessimista da America dos anos 70 sob a ótica de um ex-combatente do Vietnã que, insone, se torna um taxista em Nova York e passa a conviver com personagens decadentes da vida noturna da cidade , tem uma paixão obsessiva por uma coordenadora de campanha de um candidato à presidência dos Estados Unidos e tenta ainda salvar uma prostituta menor de idade de uma vida desregrada. Iris, a menina que abandona a família e cai nas garras de um cafetão sedutor e que será o pivô da sequencia final do filme, surgiu depois que o próprio Schrader transou com uma acompanhante menor e drogada.

Depois que Brian De Palma caiu fora do projeto e o produtor Tony Bill ter sido gongado para a direção, o filme caiu nas mãos de Martin Scorcese, então vibrando com o o sucesso de Alice Não Mora Mais Aqui. Dustin Hoffman e Al Pacino recusaram a fazer o filme (o primeiro porque achava Martin louco e o segundo porque não queria trabalhar com Tony Bill) e assim, o diretor trouxe Robert De Niro para ser Travis Bickle, o personagem principal. O ator, que havia ganho um Oscar por O Poderoso Chefão II e acabara de estrelar 1900 de Bernardo Bertolucci, topou trabalhar por apenas US$ 35 mil, salário bem inferior ao que poderia ganhar na época e acabou garantindo a estabilidade do projeto.

Para a prostituta mirim Iris veio Jodie Foster, então 12 anos de idade, Harvey Keitel, outro colaborador costumaz de Scorcese, optou em  interpretar seu cafetão e o interesse romântico de Bickle ficou com a loirinha Cybill Shepherd. A atriz, casada na época com o diretor Peter Bogdanovich, estava tão em baixa em sua carreira que não era chamada nem para fazer propaganda de xarope para tosse. Os produtores imaginavam a personagem Betsy como um tipo “à la Cybill Shepherd”, mas achavam que nunca conseguiriam a legítima por causa do baixo salário pago. No final, conseguiram.

A santíssima trindade, De Niro, Schrader e Scorcese, discutiam cada pedaço do filme e das motivações da história e obviamente que muito quebra-pau rolava, especialmente entre o diretor e o roteirista. Para complicar a situação, no meio do caminho surgiu a jornalista Julia Cameron, que escrevia sobre política para a revista Oui e foi convidada por Scorcese para reescrever os discursos políticos do filme, assim como os diálogos com os motoristas de taxi na lanchonete. Para completar, a moça se tornou amante e esposa de Martin no meio das filmagens e tudo isso regado a grandes carreiras de cocaína e atraindo o ódio dos colaboradores constantes do diretor. Para se ter uma idéia do tamanho do estrago, foi ela, por exemplo, que chamou o amigo Steven Prince para fazer o vendedor de armas e drogas, já que ele era na verdade traficante e sim, vendia armas.

Schrader achava que Scorcese estava se distanciando do texto, mas na verdade, o diretor estava brigando com Deus e o mundo para conseguir evitar que o estúdio transformasse o enredo num história de amor. Ajudou o fato de que De Niro odiou Shepherd e judiou da moça durante todo a filmagem, chamando-a de “princesinha”  e mimada e puxando o saco de Jodie Foster, por quem se encantou. Bobbie era um ator “do método” e passou algumas semanas trabalhando em um taxi e estudando doenças mentais antes de encarar o maluco taxista. A famosa cena do monólogo na frente do espelho foi totalmente improvisada e a frase “You talkin´to me?” veio, na verdade, de um exercício que sua professora de interpretação, a famosíssima Stella Adler (que havia descoberto -- e treinado também -- Marlon Brando) usava em suas aulas.

Ainda nas curiosidades do filme, Scorcese tentou em vão fazer com que o prefeito de NY atuasse no filme como o candidato a presidente Charles Palatine e depois teve que aguentar a recusa de Rock Hudson para o papel, já que estava comprometido com a série de TV Casal MacMillan. O lendário compositor Bernard Hermann disse que não queria fazer a trilha sonora da obra porque “não trabalhava em filmes sobre taxi”, mas voltou atrás depois que leu o roteiro e adorou uma cena em especial, onde Bickle acrescenta brandy aos seus cereais matinais. No final, a música do filme combinou perfeitamente com a atmosfera noir “roubada” dos filmes de Jean-Luc Godard.

Filmagens prontas e Taxi Driver ainda teve que enfrentar o problema da censura. A Motion Picture Association of America havia achado o final do filme muito violento e queria tascar uma classificação X, aquela usada para filmes pornôs (e que foi atrelada também a O Último Tango em Paris e Perdidos na Noite antes que se criasse o PG-17), o que teria destruído seu lançamento. Scorcese reeditou as cenas do massacre final com a brilhante idéia de dessaturar as cores, dando um ar de foto de tablóide à sequência.  O filme ganhou sua classificação R e ainda foi lebrado sem tantos cortes.

Taxi Driver faturou US$ 58 mil na primeira semana de exibição e US$ 12,5 milhões ao final de sua passagem no circuito norte-americano. Foi Palma de Ouro no Festival de Cannes de 1976, mas acabou totalmente esnobado pelo Globo de Ouro e pelo Oscar de 1977, não levando nenhuma estatueta. Em 1981, John Hinckley, aparentemente inspirado por Taxi Driver e afirmando querer impressionar Jodie Foster, atirou no então presidente Ronald Reagan. Nessa época Julia Cameron encontrou o produtor Bert Schneider (que odiava o filme) e disse: “Viu, o filme não era de todo mau”.  E ele respondeu “Se fosse tão bom, o cara teria conseguido matar o presidente”.

Mas 35 anos depois, fica a pergunta: sobre o que é Taxi Driver? É sobre um neurótico de guerra? Trata da solidão dos tempos modernos e a melancolia de se viver sozinho? É sobre chegarmos em um ponto onde não conseguimos mais aguentar a podridão da sociedade? É sobre um homem que resolver lutar para devolver uma menina à inocência? Ou é uma crítica em cima da mídia, distorcendo fatos e criando um herói? O filme é tudo isso e pode ter inúmeras interpretações. Até mesmo seus criadores não chegaram a uma conclusão de qual seria a mensagem central. Segundo o escritor Peter Biskind, “Schrader trouxe a guerra para casa, mas retirou dela a paixão que animava o movimento pacifista (assim como Scorcese fora forçado a atenuar a cor do sangue) e, em vez disso, insuflou-a com alienação europeia e revanchismo americano”.

Depois de Taxi Driver e até por causa do sucesso do filme, Martin Scorcese, às voltas com as drogas, começou a preparar sua decadência com o péssimo New York, New York e se viu em uma descida para o fundo do abismo que durou dois anos. Assim como Travis Bickle, ele acabaria saindo triunfante e vivo deste buraco, para se tornar um dos mais importantes diretores do cinema contemporâneo.

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