terça-feira, 1 de março de 2011

A glória e a maldição de ‘Cidadão Kane’

Publicado no site da revista Alfa em fevereiro de 2011
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Há exatos 70 anos, em fevereiro de 1941, o maior filme de todos os tempos, Cidadão Kane, estava praticamente com os dias contados. Para começar, seu estúdio, a RKO, não sabia se devia ou não lançar o filme nos cinemas. Depois havia a pressão do magnata dos jornais William Randolph Hearst para que a obra fosse queimada e ela tinha o apoio até dos donos dos outros estúdios, capitaneados pelo chefão da MGM, Louis B Mayer. No final dessa guerra, só ficou um vencedor: o próprio filme.


Muita gente hoje talvez não entenderia porque Caine é considerado o número um entre tudo o que já foi feito em Hollywood. A resposta é simples: porque até então ninguém havia feito nada parecido. A glória vai toda para Orson Welles, na época o menino-prodígio da America. Welles, órfão de pai e mãe, já havia tomado de sopetão o teatro e o rádio em Nova York. Saído de um internato, chegou à Bog Apple com idéias mirabolantes para espetáculos teatrais em meio à grande depressão. Para se ter uma idéia de sua ousadia e criatividade, encenou Macbeth de Sheakespeare somente com negros no Harlem, sendo que, num elenco de centenas de pessoas, somente meia dúzia havia tido uma experiência teatral pregressa.  Quando o nazismo começou a crescer na Alemanha, Welles encenou Julio Cesar do bardo com figurino retratando os anos de 1930 (algo que o cinema faria bem depois com Ricardo III e Romeu e Julieta).
Na mesma época, ele e seu grupo teatral, o Mercury Theater, dominavam as rádios com suas novelas. Como não havia gravação na época, o cara passava o dia pulando de uma estação a outra. Para se locomover melhor pela grande cidade, Welles contratou uma ambulância para levá-lo mais rapidamente aos seus destinos. E sua fama estourou quando ele, num lampejo de genialidade e sadismo, encenou A Guerra dos Mundos de H. G. Wells como se fosse verdade, no formato de rádio jornal. Na verdade, o genial ator calculou, quando ocorreriam as pausas dos programas das rádios concorrentes e a consequente mudança de estação por parte dos ouvintes, para começar a irradiar a invasão dos marcianos na Terra. Foi um pânico generalizado, com muita gente acreditando mesmo que o planeta estava condenado.

Era óbvio que com um currículo desses que o homem fosse chamado para o cinema e já chegou arrebentando. A RKO havia proposto um contrato que ninguém na época conseguia conceber: Welles teria domínio e liberdade total sobre dois filmes, ou seja, o estúdio não poderia dar  pitaco em nada. Sua primeira idéia era filmar O Coração das Trevas de Joseph Conrad com a câmera fazendo o papel do personagem principal (a visão subjetiva que hoje é usada muito em produções pornôs), mas na época os custos eram inviáveis. Seu projeto seguinte, um filme de mistério, também naufragou e eis que surge Herman Mankiewicz, um roteirista alcoólatra com uma proposta genial, porque não filmar a vida de William Randolph Hearst? Ele era amigo da família e frequentava as festas do milionário, portanto tinha conhecimento de causa.
Hearst era o maior propreitário de jornais nos Estados Unidos, com um império feito à base de sensacionalismo e matérias inventadas. Era um homem que começou a guerra hispano-americana em Cuba só para ter o que noticiar. Um cara que declarou certa vez que preferia ter jornais a estúdios de cinema, porque os primeiros podem destruir a vida de um homem e o outro não. Ou seja, ele era uma pessoa que qualquer um evitaria provocar. Só que Welles não era qualquer um.

E assim foi feito. Welles, com 24 anos de idade, fez de seu Kane, um magnata da comunicação, um homem que tinha tudo e perdia o que mais queria. Uma pessoa motivada por princípios na juventude que, aos poucos, vai se deteriorando em busca de mais poder e nesse caminho afasta amigos, esposas e correligionários. Cada aspecto da vida de Hearst foi mostrado, desde a aquisição de um jornal falido até a construção de um palácio (o real na Califórnia, o fictício na Flórida), mas haviam também muitas semelhanças entre ele e Welles e assim, o diretor também colocou aspectos de sua trajetória no personagem.

Acontece que Mankiewicz era um homem autodestrutivo e acabou entregando o roteiro a um amigo, sobrinho da atriz Marion Davies, a grande amante de Hearst. O milionário não se importava em ser retratado como um homem obcecado por poder. Ele era mesmo. O problema foi a maneira com que Orson retratava Davies. No filme, a moça era uma pretensa cantora sem talento que Kane enfia garganta abaixo do público. A mesma coisa que Hearst fez com sua atriz. Além disso, no filme ela era retratada como alcoólatra e infeliz (Davies bebia mesmo, mas era apaixonada pelo magnata e quando ele quase faliu ela vendeu suas coisas e arrecadou um milhão de dólares para salvá-lo). O pior de tudo é que a famosa “Rosebud”, a última palavra dita por Kane em seu leito de morte e que desencadeia toda a história do filme, era como Hearst apelidava o clitóris de Marion Davies (se você não sabe, rosebud é ‘botão de rosa’). E quando se mexe na intimidade de alguém, a coisa pega.

Hearst tentou de tudo para impedir o lançamento do filme. Usou suas fofoqueiras de plantão, Hedda Hopper e Louella Parsons para chantagear meia Hollywood, ameaçando publicar todos os escândalos que engavetara nos últimos anos. Depois ofereceu 800 mil dólares à RKO pelo filme, para poder queimá-lo e por fim, acusou Welles de ser comunista tantas vezes através de seus jornais, que o rapaz ganhou uma ficha no FBI (com registros de que ele seria homossexual também). O jornalista pressionou os outros estúdios a ajudá-lo na sua empreitada e quase conseguiu.

Previsto para ser lançado em fevereiro de 1941, Cidadão Kane chegou aos cinemas (pouquíssimos) em maio daquele ano (e junho no Brasil). O filme foi ainda esnobado nos Oscars e de nove indicações, só ganhou a de melhor roteiro. Welles nunca mais pode trabalhar de novo com a liberdade que teve com essa obra. Virou persona non grata em Hollywood e passou o resto da vida mendigando dinheiro para produções de baixo orçamento. Nunca mais ele e sua carreira foram os mesmo. Hearst morreu dez anos depois, mais lembrado por suas maldades do que por suas realizações e Marion Davies casou-se em 1954, mas nunca mais trabalhou de novo. Bebeu e morreu de câncer em 1961.

Cidadão Kane se tornou o maior filme de todos os tempos e o número um do American Film Institute. Seu estilo de narrativa (com depoimentos formando uma história) foi imitado várias vezes depois. O filme lançou as carreiras cinematográficas de Joseph Cotten e Agnes Moorehead (anos depois ela sera a Endora da série A Feiticeira). Suas tomadas de câmeras (de baixo para cima, mostrando o teto ou a dos reflexos infinitos no espelho) e ângulos são revolucionários e inspiraram inúmeros diretores depois. Kane voltou ao topo nos anos de 1960, quando cineastas europeus passaram a colocá-lo entre as maiores produções de todos os tempos e Welles acabou inspirando muitos talentos que surgiram depois como Peter Bogdanovich, Sidney Polack, entre outros.

O personagem Charles Foster Kane virou o símbolo do magnata manipulador e perigoso e sua frase, “se eu não fosse tão rico, poderia ter sido uma pessoa melhor” é a própria definição de que a fortuna corrompe. Para se ter uma idéia, muitos anos mais tarde, em 1993, o inglês Simon Hartog dirigiu um documentário para o Channel 4 sobre as relações entre a Globo de Roberto Marinho e a política nacional brasileira . E o nome era Brasil: Muito Além do Cidadão Kane. E Marinho conseguiu que o filme não passasse no Brasil. Algo que Hearst ou Kane aplaudiriam.

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