terça-feira, 9 de agosto de 2011

O verdadeiro faroeste caboclo de ‘O Cangaceiro’

Publicado no blog da revista Alfa em julho de 2011
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Em 1953, enquanto Hollywood soltava um de seus mais icônicos westerns, Os Brutos Também Amam, o Brasil conquistava o mundo com o que o pesquisador Salvyano Cavalcanti de Paiva chamou de ‘nordestern’. O filme era O Cangaceiro do diretor Lima Barreto (não confundir com o escritor carioca do século 19), considerada a melhor produção dos famosos estúdios Vera Cruz. A obra, escrita por Barreto e com diálogos da escritora Raquel de Queiróz, flertava com o cinema americano, só que ao contrário do faroeste gringo, onde grandes psicopatas e sociopatas como Jesse James ou Billy the Kid ganhavam cinebiografias romantizadas e bastante elogiosas, em terras brasileiras o bandido era apresentado como bandido mesmo, sem limites e sem piedade.


O filme mostra o bando do Capitão Galdino Ferreira, cruel líder de cangaceiros que não só não deixa o progresso chegar ao sertão, como invade uma pequena cidade e sequestra uma professorinha. O problema é que seu maior amigo e braço direito, Teodoro, se apaixona pela moça e contrariando as ordens do chefe, foge com a menina, dando início a uma perseguição implacável pelo sertão.

O Cangaceiro tem um ritmo irregular, algumas interpretações mais duras que as do Stallone, mas apresenta recursos narrativos de vanguarda e uma violência que desmistifica a imagem romântica do cangaço, especialmente a aquela relacionada a Lampião, seu maior representante. Quando o bando invade a cidadezinha, por exemplo, vê-se os bandidos amarrando moças claramente com intenção de estuprá-las e marcando seus rostos com ferro quente (diz-se que Virgulino Ferreira fazia o mesmo com aquelas que considerava mais “devassas”). Os caras chegam inclusive a roubar cofrinho de criança. Ao mesmo tempo, mostra os governantes da cidade não fazendo absolutamente nada para salvar as pessoas e ainda por cima puxando o saco do cangaceiro (um desses políticos se despede com um ‘Boa viagem e volte sempre’).

No lado narrativo, existem grandes cenas como de Gaudino com um padre (e a consequência disso), a execução de Teodoro (uma das mais criativas que já assisti e que, provavelmente, gerou o nome do filme em inglês, The ninth bullet), o desespero e papel duplo das mulheres que acompanhavam os cangaceiros e ainda a emboscada com os volantes.

A obra de Lima Barreto acabou ganhando o prêmio de  Melhor Aventura no Festival de Cannes  de 1954 e também o de melhor trilha sonora, consagrando a balada popular ‘Olê Muié Rendeira’, interpretada por Vanja Orico, com arranjos de Gabriel Migliori e coro dos Demônios da Garoa.  Ficou  anos em cartaz na França e, comprada pela Columbia Pictures, foi distribuída para mais de 80 países no mundo. O ator Milton Ribeiro, que fazia Galdino, virou personagem de história em quadrinhos e também o maior representante das aventuras de cangaço no Brasil, trabalhando depois em filmes como Corisco – o Diabo Louro, Lampião – O Rei do Cangaço, A Morte Comanda o Cangaço entre outros. Já Vanja Orico, que já havia cantado antes em Mulheres e Luzes de Federico Fellini, ganhou os palcos no mundo e acabou virando motivo de piada do sempre sensacional cronista carioca Stanislaw Ponte Preta, que cunhou a expressão “Vanja vai, Vanja vem” para mostrar passagem de tempo, uma vez que a moça viajava o tempo todo.

E uma curiosidade ótima de O Cangaceiro: a obra foi filmada em Vargem Grande do Sul, no interior de São Paulo, e um dos coadjuvantes era o compositor Adoniran Barbosa e foi graças a esse filme que ele conheceu o pessoal do Demônios da Garoa e fizeram uma das parcerias mais famosas e geniais da história da MPB. No final de 2010 foi anunciado que o filme passaria por uma restauração e seria lançado em DVD duplo.

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