terça-feira, 5 de outubro de 2010

Os Bons Companheiros: o lado B da Máfia

Publicado no site da revista Alfa em outubro de 2010
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O Poderoso Chefão pode ser o melhor filme de máfia já feito, mas foi Os Bons Companheiros, que completa 20 anos este ano, que tirou o romantismo dos criminosos e mostrou a dura realidade que cerca seu mundo. Enquanto no primeiro você torcia pelo vilão, já que a “famiglia” mafiosa é mostrada como um centro de valores tradicionais envolvendo honra, camaradagem e companheirismo (ou como um crítico inglês definiu, “o mundo é que é louco, eles não”), no segundo, Scorcese decidiu colocar o verdadeiro objetivo daquela gente: ganhar dinheiro em cima do medo, do vício e da morte alheia.

Scorcese vinha de uma grande polêmica com o seu A Última Tentação de Cristo, que provocou a ira de cristãos no mundo todo e apesar de ter prometido não mais fazer filmes de máfia, resolveu levar às telas o livro “Wiseguy” de Nicholas Pileggi, contando a história real de Henry Hill, que escalou a hierarquia da organização criminosa nos Estados Unidos e acabou se tornando delator do FBI para escapar de uma condenação mais pesada.

Para o papel principal, chamou um ator menos conhecido e muito talentoso, Ray Liotta, que vinha de Totalmente Selvagem e Campo dos Sonhos, apesar do produtores insistirem em medalhões como Tom Cruise. Robert De Niro, em mais uma parceira com Scorcese, dá um show como o irlandês Jimmy Comway, associado à gangue de Paulie Cicero, interpretado por Paul Sorvino, mas quem rouba todo o filme é Joe Pesci e seu Tommy DeVito, o gangster sociopata e sem limites.

Pesci, que já havia trabalhado com Scorcese e De Niro em Touro Indomável, relutava em fazer o papel. Como na juventude havia trabalhado em um restaurante freqüentado por mafiosos, tinha muitas histórias para contar ao diretor e este, para convencer o ator a participar da produção, colocou algumas delas no meio da narrativa.

A mais famosa gerou uma das mais marcantes cenas do filme, onde Joe Pesci, nervoso, fica ameaçando Ray Liotta, dizendo “você me acha engraçado?”. A sequencia foi “negociada” em segredo entre Scorcese, Liotta e Pesci e a cara de surpresa dos outros atores na cena era completamente genuína. Em entrevista recente para a revista GQ, um deles afirmou que todos achavam que Joe iria mesmo matar Ray no set de filmagem. Seu personagem realmente era assustador. Não pensava duas vezes em ferir ou matar alguém. Nervoso e agitado, acabou dando o Oscar de melhor ator coadjuvante a Joe Pesci.

Improvisação foi o grande segredo para atuações tão convincentes. O diretor apresentava mais situações do que scripts prontos aos seus atores e criava um ambiente de mistério, onde um não sabia o que o outro iria dizer. Além disso, assim como aconteceu nos filmes do Chefão, contratou legítimos membros da Máfia e amadores para figuração. Até mesmo Charles e Catherine Scorcese, pais do diretor, aparecem no clássico, a última como a mãe de Tommy De Vito.

Outro detalhe é a utilização da música em cena. Enquanto o filme abre com “Rags to Riches” de Tony Bennet para ilustrar o lirismo dos anos 50, vai terminar com “My Way” na versão do Sex Pistols, ilustrando a ascenção e queda de Henry Hill. Na sequencia onde o bandido faz negociações com drogas entre o final dos anos 1960 e começo de 70, o diretor desfila um pout-pourri de clássicos como “Jump Into the Fire” de Nilsson, “Memo From Turner” e “Monkey Man” dos the Rolling Stones, “Magic Bus” do The Who e “Mannish Boy” de Muddy Waters. E acredite, nunca mais você vai conseguir escutar o solo de piano de “Layla” de Eric Clapton, sem lembrar dos corpos das pessoas envolvidas com o assalto ao avião da Lufthansa, mutilados depois que Jerry Comway “conversou” com eles.

A violência do filme assustou a platéia das exibições-teste. Em uma delas, 70 pessoas chegaram a sair da sala no meio da projeção. Segundo o diretor, nunca antes um filme havia recebido notas tão baixas antes nesses previews. O resultado foi que acabou sendo lançado em metade das salas originalmente programadas e foi ofuscado na bilheteria e na cerimônia do Oscar por Dança com Lobos. Vinte anos depois, quem se lembra do filme de Costner?

Os Bons Companheiros colocou Scorcese de volta ao panteão dos grandes diretores americanos do cinema moderno e foi o ponto alto da carreira de Liotta (que foi subestimado por Hollywood e acabou caindo em produções de segunda) e Pesci (que teve fez algumas boas produções como JFK, Esqueceram de mim, Cassino e Máquina Mortífera, mas nenhum papel com o impacto de DeVito).

Foi o filme que abriu caminho para seriados como Família Soprano, onde metade do elenco, aliás, foi se alojar. Lorraine Bracco, que fazia a esposa de Henry Hill no cinema, tornou-se a Dra Melfi, psicoterapeuta de Tony Soprano (a atriz recusou ser Carmela Soprano pois alegou que já havia tido sua quota de mulher de mafioso). Michael Imperioli, o Spider da produção de Scorcese, ganhou o papel do sobrinho de Soprano no seriado. Há, aliás, uma homenagem em tom de brincadeira em um dos episódios. No filme, Imperioli, um garçom, leva um tiro no pé, disparado por Joe Pesci, depois de ofendê-lo. Na série, é ele que dispara um no pé de um atendente que o trata mal em uma rotisserie.

Mais do que um filme de máfia, Os Bons Companheiros é uma aula de cinema e continua tão atual quanto em 1990. Imperdível. E agora, confira como Joe Pesci é “engraçado”. Ou não.

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