terça-feira, 19 de julho de 2011

Um filme para crianças, BBBs e políticos

Publicado no site da revista Alfa em julho de 2011
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Décadas antes de programas de televisão louvarem a ignorância, décadas antes do Ministério da Educação sair em defesa ferrenha de um livro que justifica o português errado, décadas antes de um mundo onde presidentes (não é só aqui) tinham orgulho de nunca ter lido um livro, houve Nascida Ontem, filmaço de George Cukor, lançado em 1950. Nascida Ontem deveria constar no currículo escolar como o filme que mostra que a ignorância é a maior inimiga da cidadania, por mais que ela aparente, muitas vezes, ser uma benção.


Explicando melhor, Nascida Ontem mostra um homem poderoso, ignorante, sem educação e milionário (fez fortuna com ferro-velho) que vai a Washington tentar comprar um ou dois congressistas e  contrata um jornalista para “educar” sua burra namorada. Acontece que, ao mergulhar na capital federal e aprender sobre as motivações dos fundadores da nação, aentrando em contato com documentos como a Constituição e Declaração de Independência e lendo sobre aqueles que fizeram a história do mundo, a moça começa a questionar as ações de seu homem. Por mais que pensar, segundo ela, cause dor de cabeça e angústia. Aos poucos, ela começa  a desejar ser menos usada, ter mais amor próprio e aceita abdicar de uma vida confortável por uma existência digna.

O roteiro é baseado numa peça de Garson Kanin e Cukor a filmou quase como teatro, chegando a fazer os atores se apresentarem ao vivo, em frente a platéia, por seis vezes antes da filmagem, para ver o ritmo das piadas. E é um filme que cresce -- especialmente -- graças à qualidade de seus atores. Um William Holden no começo de carreira faz o jornalista, Paul Verrall, enquanto o corrupto ricaço é interpretado, com toda força possível, pelo ótimo e hoje esquecido Broderick Crawford (que estourara um ano antes em A Grande Ilusão). E num papel que havia sido destinado a Rita Hayworth e que Marilyn Monroe disputou e não levou, está a excepcional Judy Holliday.

Holliday teve uma carreira meteórica no cinema. Começou nos bastidores do teatro, trabalhando para o grupo de Orson Welles como operadora de quadros de interruptores e aos poucos foi galgando até os palcos. No cinema, a grande chance veio como a esposa que atira no marido infiel na ótima comédia da dupla Katherine Hepburn e Spencer Tracy, A Costela de Adão. O sucesso deste filme lhe deu a Billie Dawn de Nascida Ontem. E è nele que dá para se notar o timing de comediante que Judy tinha e a capacidade de interpretar brincando com os olhos e tom de voz, sem nunca perder a naturalidade. A sequência em que ela joga Gim Rumy com Crawford, é um trabalho de gênio e totalmente hilária, sem nunca forçar nada (confira abaixo). Judy ganhou seu Oscar de Melhor Atriz por esse filme, e por mais que fizesse sempre o papel de loura burra, era extremamente inteligente e politizada, chegando a ser investigada como comunista pelo comitê do Senador MacCarthy na década de 1950. Foi inocentada, mas sua carreira nunca mais foi a mesma depois disso. Dedicando-se mais ao teatro e à música (foi namorada do deus do jazz Gerry Mullingan), ela faleceu três semanas antes de seus 44 anos, em 1965, devido a um câncer de mama.

Nascida Ontem, apesar de toda sua inocência típica dos idos de 50 (lá pelas tantas um advogado diz que é raríssimo achar um senador corrupto), diz muito para os dias de hoje. Mostra que você até pode abdicar de conhecimento em troca de poder e grana, mas uma hora a conta pode chegar. É um filme que tenta localizar o poder do cidadão e a vantagem em fazer valer os seus direitos. É uma obra que mostra que sim, seu voto pode valer muito mais que um dia de folga e que um ser humano não deveria ter um preço.  E por mais que as coisas às vezes parecem apontar para outro caminho, ainda é melhor acreditar nesses valores.

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